segunda-feira, 11 de março de 2013

Dois mais dois

O senhor Schulz, alemão, socialista, lembra que depois dos bancos é preciso não destruir o resto. O senhor Juncker, luxemburguês, lembra, talvez com mais pertinência ainda, que a história é uma vadia que regressa com uma regularidade desagradável. Não são génios. Não dizem, sequer, grandes novidades. Tudo isto é tão evidente que o que de facto nos devia estarrecer é a falta de consenso.

quarta-feira, 6 de março de 2013

O grande amigo


Ontem morreu um amigo de Portugal. Ou pelo menos de bastantes portugueses. As reacções, mais que muitas, mostram isso mesmo: Paulo Portas quis «sublinhar» as «provas de amizade com Portugal»; o Partido Socialista, além de referir a amizade, vai mais longe e «presta-lhe homenagem»; Mário Lino está «muito pesaroso»; o PCP, evidentemente, «honra a memória» do senhor. Mas não se pense que Chávez era apenas um amigo de Portugal. Tinha outros amigos. Durão Barroso, que ainda é Presidente da Comissão Europeia, elogiou o «desenvolvimento social» da Venezuela; Hollande, no meio de «profundas e sentidas condolências ao povo venezuelano», aponta a «luta pela justiça e desenvolvimento», os nossos bons vizinhos espanhóis falam numa «grande personalidade». É isto. Chávez morreu e todos lamentam. As democracias liberais lamentam a morte de um ditador cuja principal ocupação foi comprá-las com dinheiro fácil. Isso antes de qualquer cuidado com o «desenvolvimento social» do que quer que seja. Das «relações comerciais» e restantes «amizades» sobra um povo na miséria, favelas abjectas, prisões impenetráveis, presos e exilados políticos, além da criminalidade e da violência da vida habitual. Se há moral a retirar de tudo isto, é a de que tendemos, colectivamente, a ser uns grandes filhos-da-puta.

domingo, 3 de março de 2013

Miguel Tamen


«A possibilidade de o futuro ter a cor da barba de Camões irá ser glosada pouco depois no muito inferior «A Portuguesa», de Henrique Lopes de Mendonça, que se inicia com o espectáculo de uma ressurreição dos mortos em que inquietantemente o passado se repete (e que, conjungada com uma partitura dolorosa de Alfredo Keil, inaugura neste ponto uma série de desafinações colectivas).»

Miguel Tamen, em Artigos Portugueses

P.S.: Há, neste livro, pensamentos infinitamente mais sublimes, mas assumindo as limitações minhas, prefiro repescar o que há de mais trauliteiro. Talvez um destes dias comente o resto.

A falta de lubrificante como metáfora

A nossa miséria é a matemática. Trata-se de um fardo nacional. Diria que compreendo: talvez por decorrência própria da propriedade de ser ‘nacional’ (o JPC diria indígena; eu não) também desconfio dessas artes numéricas. Contar cansa-me a vista e calcular gasta-me a alma. Consome-me, em certo jeito. No entanto, malgré tout, uma matematicazinha pontual, discreta e educada faz falta. Principalmente quando, parafraseando o que diria, se falasse, o espírito do tempo, isto anda mau. 
Acontece que ontem, dia dois de Março do ano da graça de dois mil e treze, durante a tarde, se manifestaram um pouco por todo o país pessoas que, descontentes com os desenvolvimentos da nossa contingência, se associaram a uma coisa chamada «Que se lixe a Troika – O Povo é quem mais ordena». Eram muitas, as pessoas. E tal não deve surpreender. Pondo de parte eventuais registos mais sarcásticos, a miséria é matéria de facto. No entanto, sendo a miséria factual, acaba vendo-se sozinha na condição. Tudo o resto, de parte a parte, com mais ou menos talento, acaba sendo ficcional. Ou talvez, quem sabe, mero reflexo da restrição velha: a falta de jeito para calcular. 
Anunciar que houve em Portugal um milhão e meio de pessoas a manifestar-se ontem é jogo. Principalmente quando, para fundamentar o gordo cardinal se diz que houve 800 mil pessoas em Lisboa. Estamos habituados. De um lado subavalia-se, no outro sobreavalia-se. É a vida e assim. Mas no meio destas tentativas mais ou menos conseguidas de simples manipulação, a essência perde-se e os movimentos desonram-se. A manifestação de ontem valeu por si, pelas pessoas que efectivamente nela participaram. Valeu pela senhora que, a certa altura, disse em directo que lhe estavam a ir ao cu a seco, numa declamação de qualidade superior. Isto, mais que tudo, devia ser ouvido pelos organizadores do movimento. Ninguém precisa de repeteco.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Iridescência viva

«Não saber como escrever, mas sentir com a minha intuição criminosa como as palavras se combinam, o que se tem de fazer para que uma palavra comum se anime e comungue do brilho, do calor, da sombra da sua vizinha, ao mesmo tempo que nela se reflecte e a renova no processo, para que cada linha seja uma iridescência viva (...)»

Retirado de «Convite Para Uma Decapitação», de Vladimir Nabokov
(Trad. Carlos Botelho, Assírio e Alvim, 2006)